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Crónica de Opinião: Como se mede a felicidade?

Crónica de Opinião: Como se mede a felicidade?

03 Novembro 2021, 9:00

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O filósofo australiano Peter Singer reuniu “82 breves ensaios sobre coisas realmente importantes”, numa publicação que intitulou “Ética no Mundo real”[1]. No texto “Deveria estar a ser a última geração”, o autor reflete sobre o que os filósofos chamam de “assimetria”, neste caso problematizando a (i)moralidade de se trazer uma criança ao mundo sabendo que, a um tempo só, muitas vezes vai ser infeliz e contrair doenças e outras feliz e saudável. Na incerteza desta dúvida reflexiva, a dado passo pergunta “Quão boa tem uma vida de ser para que seja razoável trazer uma criança ao mundo?”[2], deixando no ar uma questão retórica: se nós sabemos que no futuro, como hoje, muitas crianças irão gravemente sofrer, devemos continuar a reproduzir-nos sabendo que as vamos “prejudicar seriamente”? A vida vale a pena?

Estas perguntas encaminharam-me para uma outra reflexão que há dias o Professor Álvaro Campelo, da Universidade Fernando Pessoa, fazia no âmbito da palestra “O idoso, um cidadão feliz: estratégias a adotar[3]. Lembrava-nos o palestrante, a certa altura expor outras palavras, naturalmente, que ser feliz resulta sempre de coisas simples e é uma condição anexada a multímodas variáveis. E deu exemplos e eu, de imediato, recordei um episódio que vivi há sensivelmente 17 anos, em Cacheu, na Guiné-Bissau, onde me encontrava em formação de professores.

Eram cerca de 15h. Agosto. Tinha parado de chover e apeteceu-me um passeio pela Avenida do 4º Centenário, em direção ao cais. Muito perto do Centro e Recursos, uma estrutura instalada pela ACGB[4], abordou-me a Mari, uma amiga felupe que ajudava na missão católica local e que vivia com bastante menos de €1 por dia, tinha 8 filhos e um marido, felupe também e pescador, mas muito doente: “Oi, Zé! Vais regressar a Portugal. Quando voltas? Quando voltares trazes-me uma gargantilha?”. Fiquei estupefacto e dei-lhe uma resposta de circunstância. À noite, na missão Católica onde tomava a refeições e pernoitava, a Irmã Solange, sentindo-me ensimesmado, perguntou: “Zé, que tens, que estás tão calado?”. Contei-lhe a razão do meu constrangimento. “E?!” perguntou-me, com razoável espanto a Irmã. “E?! Irmã! Se a Mari me pedisse dinheiro para uma rede nova para o marido pescador ou para comprar comida para os filhos, eu entenderia. Mas uma gargantilha?!”. “Ó Zé, quem te disse que o mais urgente para a Mari é uma rede para o marido ou comida? Eles têm fruta e a Mari leva comida da Missão. E se mais importante para a Mari for todos os dias de manhã, ao sair da sua “Kasa”, com a gargantilha ao pescoço, se sentir a mulher mais bonita de Cacheu?”.

Esta resposta foi talvez o primeiro grande murro no estômago que me deram, nestas minhas andanças de cooperante. Com efeito, eu estava a medir os interesses da Mari pelos meus e eu não convivo muito bem com a fome.

Para a pergunta de Peter Singer “Quão boa tem uma vida de ser para que seja razoável trazer uma criança ao mundo?” não haverá uma, mas talvez tantas respostas quantos os habitantes do universo. Contudo, uma dúvida me assiste: não estaremos a medir a felicidade pelo ter, esquecendo-nos que são as coisas mais simples que nos adoçam a alma, como um bom dia, um sorriso, uma pequena lembrança? Como me sentia feliz, quando menino ainda, em todas as madrugadas do 25 de dezembro, quando corria à lareira para tomar a prenda que o Menino jesus colocara na minha chanquinha e que, não raro, era uma pastazinha de chocolate!

A felicidade não é mensurável e tão pouco uma meta. É um caminho de afetos, de gestos simples, de um rádio que nos fala do mundo, de um telefone que nos liga ao outro, de uns sapatos de verniz que nos dão a sensação de estarmos na mesma prateleira dos mais afortunados.

Por isso, SIM, a vida vale a pena e a felicidade não se mede!

 

Meadela, 02/11/21

José Luís Carvalhido da Ponte

[1] Publicado em 2016, foi traduzido para português por Desidério Murcho e editado por Edições 70, em julho de 2017.

[2] idem, p. 54

[3] in Jornadas “Honra os Teus Velhos”, organizadas pela Fundação Caixa Agrícola do Noroeste.

[4]Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau, Viana do Castelo.

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